quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Kosovo, 1999

Os intervalos para almoço em Pristina eram a melhor ocasião para praticar a nova paixão pela fotografia descoberta neste território dos Balcãs. Em especial no mercado, o "bazaar", junto ao estádio da cidade. Naquele mês de Agosto de 1999 Pristina respirava ainda os odores dos bombardeamentos da NATO, que tinha terminado em Junho anterior. Tudo sob um sol escaldante e um calor abrasador. Os "Kosovares" saíam para a rua para saborear a nova liberdade e também para pôr em prática a sua capacidade (ou apenas vontade?) para arrancarem com uma nova economia (dita: cinzenta, informal, paralela, subterrânea, etc.) que durante muitos anos (desde 1989, ano em que Slobodan Milošević pôs fim à autonomia dada à província do Kosovo anteriormente oferecida por Tito) esteve enterrada.
No centro de Pristina lá estava o ainda imponente edifício que antes tinha servido de quartel-general da polícia jugoslava na capital da província e que tinha sido um dos alvos preferidos dos aviões da Aliança que, de forma perfeitamente cirúrgica, acertaram com um tiro na horizontal, mais ou menos ao nível do terceiro ou quarto andar, destruindo-o por completo. Tendo os bombardeamentos terminado em meados de Junho, era ainda possível ver no mês de Agosto o estado "intacto" (por contraditório que pareça...) em que se encontrava a destruição do prédio, com radiadores suspensos no vazio, canalizações ainda a jorrar água, pedaços de betão pendurados, etc. No meio daquele caos, lá estava no rés do chão uma sala de conferências praticamente impecável, com as cadeiras alinhadas como se tudo estivesse pronto para uma reunião agendada para aquele dia.
À saída do "bazaar" deparou-se-me aquele espectáculo dantesco que de imediato foi escolhido para "pano de fundo" de uma fotografia que não podia ser deixada para outra ocasião: em primeiro plano estava um rapaz à beira do passeio com uma balança para pesar pessoas; ao fundo, o edifício da polícia. Nada melhor para relatar o caricato da situação em que se encontrava o Kosovo. Aquela "actividade comercial" do rapaz da balança fazia parte do novo rol de modos de vida que os habitantes da província acabavam de descobrir para conseguir levar para casa mais uns trocos (na altura marcos alemães). Encontrado o enquadramento para a fotografia, nada mais faltava do que apoiar no botão para disparar. O rapaz tinha aceite a fotografia, como aliás todos os Kosovares com que me cruzei durante 6 meses aceitaram posar para as minhas fotografias. Era, para eles, a melhor forma de se mostrarem gratos aos "expats" pela intervenção que os tinha libertado das garras de Slobodan Milošević. Por outro lado, também para mim a fotografia servia como o melhor carta de visita para um primeiro contacto.
Os primeiros instantes de preparação da fotografia foram suficientes para que, vindos não sei de onde, aparecessem mais três rapazes que de imediato me pediram para posar junto do rapaz da balança. Tirei, julgo, três ou quatro fotografias. Os três rapazes agradeceram e foram-se embora. Eu fiquei mais uns instantes com o rapaz da balança, até porque me interessava saber um pouco mais sobre a sua "actividade comercial". Para dar a minha modesta ajuda, aceitei pesar-me e paguei o que o rapaz me pediu.
Já um pouco mais à frente, os três rapazes voltaram-se para trás e perceberam que entre mim e o rapaz da balança havia troca de dinheiro. Fizeram-me um sinal com a mão. Não conhecendo o terreno, desconfiei que estariam a pedir-me dinheiro (o que seria absolutamente compreensível naquelas circunstâncias) e fiz sinal que não, ao que os rapazes responderam como que não tendo entendido o que eu queria dizer. Vieram para trás. Eu achei que ia ter um caso complicado, com quatro rapazes a tentar obter dinheiro, num local que eu desconhecia e que poderia ser para mim relativamente perigoso.
A surpresa maior veio quando um dos três rapazes me disse: "Não há problema. Nós não queremos mais nada. Só que o senhor fotógrafo está a fazer o seu trabalho, como o nosso amigo está a pesar as pessoas para tentar ganhar algum. Por isso, como nos tirou fotografias, nós queremos pagar-lhe. Achamos normal e correcto. Cada um deve ser pago por aquilo que faz". Expliquei que não tinham nada a pagar, meio encavacado dei meia volta e perdi-os de vista. Aquela cena perseguiu-me durante semanas. Não estava habituado a ver gente jovem, pobre, atribulada, em ambiente complicado, a ter atitudes decentes… Foi este o meu primeiro contacto com os kosovares genuinos.

2 comentários:

  1. Há experiências que nos reaproximam do essencial. E a leitura desta crónica é uma delas.

    ResponderEliminar