segunda-feira, 26 de outubro de 2009

TODA A VIDA É UM SONHO


("Repouso à sombra", Évora, Julho 2006, J. Silva Rodrigues)

Quando outra virtude não haja em mim, há pelo menos a da perpétua novidade da sensação liberta.
Descendo hoje a Rua Nova do Almada, reparei de repente nas costas do homem que a descia adiante de mim. Eram as costas vulgares de um homem qualquer, o casaco de um fato modesto num dorso de transeunte ocasional. Levava uma pasta velha debaixo do braço esquerdo, e punha no chão, no ritmo de andando, um guarda-chuva enrolado, que trazia pela curva na mão direita.
Senti de repente uma coisa parecida com ternura por esse homem. Senti nele a ternura que se sente pela comum vulgaridade humana, pelo banal quotidiano do chefe de família que vai para o trabalho, pelo lar humilde e alegre dele, pelos prazeres alegres e tristes de que forçosamente se compõe a sua vida, pela inocência de viver sem analisar, pela naturalidade animal daquelas costas vestidas.Volvi os olhos para as costas do homem, janela por onde vi estes pensamentos.
A sensação era exactamente idêntica àquela que nos assalta perante alguém que dorme. Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egoísta é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta.
Ora as costas deste homem dormem. Todo ele, que caminha adiante de mim com passada igual à minha, dorme. Vai inconsciente. Vive inconsciente.
Dorme, porque todos dormimos. Toda a vida é um sonho. Ninguém sabe o que faz, ninguém sabe o que quer, ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida, eternas crianças do Destino. Por isso sinto, se penso com esta sensação, uma ternura informe e imensa por toda a humanidade infantil, por toda a vida social dormente, por todos, por tudo.
É um humanitarismo directo, sem conclusões nem propósitos, o que me assalta neste momento. Sofro uma ternura como se um deus visse. Vejo-os a todos através de uma compaixão de único consciente, os pobres diabos homens, o pobre diabo humanidade. O que está tudo isto a fazer aqui?
Todos os movimentos e intenções da vida, desde a simples vida dos pulmões até à construção de cidades e a fronteiração de impérios, considero-os como uma sonolência, coisas como sonhos ou repousos, passadas involuntariamente no intervalo entre uma realidade e outra realidade, entre um dia e outro dia do Absoluto. E, como alguém abstractamente materno, debruço-me de noite sobre os filhos maus como sobre os bons, comuns no sono em que são meus. Enterneço-me com uma largueza de coisa infinita.
Desvio os olhos das costas do meu adiantado, e passando-os a todos mais, quantos vão andando nesta rua, a todos abarco nitidamente na mesma ternura absurda e fria que me veio dos ombros do inconsciente a quem sigo. Tudo isto é o mesmo que ele; todas estas raparigas que falam para o atelier, estes empregados jovens que riem para o escritório, estas criadas de seios que regressam das compras pesadas, estes moços dos primeiros fretes, tudo isto é uma mesma inconsciência diversificada por caras e corpos que se distinguem, como fantoches movidos pelas cordas que vão dar aos mesmos dedos da mão de quem é invisível. Passam com todas as atitudes com que se define a consciência, e não têm consciência de nada, porque não têm consciência de ter consciência. Uns inteligentes, outros estúpidos, são todos igualmente estúpidos. Uns velhos, outros jovens, são da mesma idade. Uns homens, outros mulheres, são do mesmo sexo que não existe."



"Livro do Desassossego", Fragmento 70, de Bernardo Soares (Fernando Pessoa)


("Toda a vida é um sonho", Barcelona, Junho 2006, J. Silva Rodrigues)

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

TRÍPTICO "A Condição Humana"


De regresso da visita ao Forte de Breendonk, Malines, apeteceu-me pintar ou desenhar um tríptico sobre “a condição humana”.
Na falta de inspiração para pintar e sem a mais pequena dose de técnica para desenhar, aqui ficam alguns esboços, algumas linhas para este tríptico construído à volta de três painéis, ou três sentimentos distintos, mas todos eles interligados: a barbárie, a força e a honra e finalmente o reconhecimento.
Já praticamente tudo foi escrito e dito sobre estes sentimentos humanos. De todas as formas e cores, com tonalidades variadas. Contudo, nunca será demais insistir na necessidade de ter bem presente o que o Homem – na utilização do seu livre arbítrio bíblico – é capaz de fazer ou de que é capaz de se abster de fazer.
  1. A barbárie
É repugnante tudo o que se relaciona com o que de bárbaro somos capazes de cometer, seja por loucura, seja por interesses ainda mais vis. Contudo, repetir lugares comuns, dizer o que já tantos disseram sobre a barbárie, não sendo desnecessário, é fastidioso!

É costume dizer-se que uma imagem vale mais do que mil palavras.
A imagem da entrada no Forte de Breendonk ilustra infelizmente o que foi o calvário terrível de seres humanos provocado por homens que perderam – se alguma vez tiveram! – todo o sentido natural da existência humana.
Fica a imagem para repetir "Nunca Mais!", apesar da fraqueza da frase; impotente contra o que, depois daquele período triste da nossa existência, continua a acontecer nos nossos dias. Mesmo e ainda nos nossos dias! Devíamos ter vergonha de alguns dos nossos semelhantes!


(Forte de Breendonk, Bélgica)










  1. A força e a honra
Robert Maistriau foi um dos três heróis que, na noite de 19 de Abril de 1943, juntamente com Youra Livschitz e Jean Franklemont, munidos de apenas uma lanterna vermelha conseguiram fazer parar o tristemente famoso 20° Comboio que seguia para a Alemanha nazi repleto de prisioneiros previamente agrupados no Forte de Breendonk (http://www.breendonk.be/). Graças à acção destes três heróis, mais de 200 prisioneiros foram libertados, alguns dos quais vindo a ser novamente apanhados pelos alemães. Trata-se de um feito heróico e único na história da Segunda Guerra mundial dado que terá sido o único comboio interceptado pelos resistentes. (Vale a pena ler "Rebelles silencieux-l'Attaque du 20ème convoi pour Auschwitz", de Marion Schreiber, éditions Racine, 2002).
Tive a felicidade de assistir, juntamente com um punhado de pessoas, no local onde ocorreu a operação, em Boortmeerbeek, em plena linha de caminho de ferro, no dia 19 de Abril de 2003, à descrição do ataque ao 20° Comboio feita na primeira pessoa pelo próprio Robert Maistriau. Depois desse dia, sempre me interessou estudar a força de carácter, a coragem, mas acima de tudo a modéstia de Robert. Assisti emocionado ao seu funeral, na manhã do dia 1 de Outubro de 2008 na Igreja de Woluwe St. Lambert, Bruxelas. Robert tinha falecido na noite de 25 para 26 de Setembro, com 87 anos de idade. Foi considerado um herói nacional. E com todo o mérito!

Obrigado Robert Maistriau.


(Robert Maistriau)








  1. O reconhecimento
O desembarque das forças aliadas nas praias francesas da Normandia foi talvez o maior desastre militar dos últimos séculos. Foi também, sem sombras de dúvida, a maior e a mais sincera expressão de amor e de desapego à vida por parte dos soldados aliados, porque estava em jogo não só o futuro da Europa que havia caído nas mãos nazis, mas também da Humanidade. Mais de 5.000 soldados canadianos perderam a vida no desembarque!!!
Passados mais de sessenta anos sobre a data do desembarque é ainda emocionante visitar os locais onde milhares e milhares de jovens britânicos, americanos, canadianos, etc., perderam a vida. É emocionante porque o tempo não apagou absolutamente nada do que foram aqueles dias terríveis. A memória lá está, intacta!
Foi numa visita com contornos turísticos que assisti em Maio de 2006 a um acontecimento que, pela ordem natural das coisas, vai sendo cada vez mais raro: o encontro com um velho soldado canadiano que, tendo desembarcado na costa francesa e sobrevivido, nunca mais lá tinha voltado. Descobrimos, juntamente e em simultâneo com o Caporal Steve Charchalis, já com cerca de 82 anos, o seu nome no memorial erigido na "Juno Beach" em honra dos soldados que participaram na operação.
É sempre emocionante este tipo de encontros. Quase se diria ser um encontro impossível ou improvável, se pensarmos que, passados tantos e tantos anos poucos restam dos que em meados desse século vinte já tão distante deram a vida pelos outros, sem contudo os conhecer.
Mas o ser humano tem forças de reserva para todas as surpresas! E é num cenário quase minimalista que surge do nada o sentimento mais nobre da parte todos os que recebem e quase nada têm para dar a esses valentes soldados. O agradecimento pela vida!
Um homem de estatura corpulenta, holandês, na casa dos cinquenta e cinco, sessenta anos, passeando o seu capacete de motard, não resistiu e fez o que só quem viveu nos países vítimas da guerra poderia fazer. O homem aproximou-se de Steve Charchalis, quase se pôs de joelhos e agradeceu-lhe. Agradeceu-lhe por ter libertado o seu país, a Holanda, do jugo nazi e de ter dado de novo a esperança a uma Europa destroçada e destruída. Não faltaram as lágrimas soltadas daquele corpo imenso, daquele sentimento profundo que provavelmente aguardava há muito para se soltar. Também nós soltamos algumas lágrimas.
Obrigado Caporal Steve Charchalis!






(Fotos, por J. Silva Rodrigues)

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Asie Centrale - photos (Vol. 2)

Voyager, travailler ou tout simplement passer par les territoires de l'Asie Centrale implique l'existence de photos. Non pas par le seul motif de probablement ne plus retourner à ces endroits, mais surtout parce que les peuples, les gens, les monuments, les paysages en exigent.

C'est exactement ce qui s'est passé avec moi au cours des années que j'ai eu l'occasion de voyager dans ces parages de l'Asie Centrale et de la Route de la Soie.

Pendant plus de sept ans, mon exposition sous le titre "Regards d'Asie Centrale" ou tout simplement "Sur la Route de la Soie" a fait le tour en Belgique, dans plusieurs bâtiments de la Commission Européenne et ailleurs, ainsi qu'au Portugal (Matosinhos et Porto) vient de se terminer en apothéose avec la dernière exposition au Théâtre de Vila Real pendant tout le mois d'avril dernier.

Maintenant c'est fini ce parcours car j'estime que la limite de la patience du public et de moi-même pour regarder de près toujours les mêmes photos a été atteint. C'est le moment de les faire retourner à la "maison-mère" à Bruxelles, pour rejoindre la boîte où se trouvent les autres centaines de photos qui n'ont jamais reçu l'honneur d'une exposition publique.

Cependant, je trouve que les photos, après cette longue – trop longue! – période d'exposition ont acquis un statu propre, une certaine autonomie par rapport à son auteur. Par conséquent, elles méritent de continuer avec leur visibilité, maintenant en profitant des atouts des nouvelles technologies. J'ai décidé ainsi de les montrer ici.


(Chimbay, Karakalpakstan, Uzbekistan)


(Bazaar, Tashkent, Uzbekistan)


(Broadway, Tashkent, Uzbekistan)


(Broadway, Tashkent, Uzbekistan)


(Bukhara, Uzbekistan)


(Bukhara, Uzbekistan)


(Bukhara, Uzbekistan)


(Chimbay, Karakalpakstan, Uzbekistan)


(Fashion Show, Bukhara, Uzbekistan)


(Fashion Show, Bukhara, Uzbekistan)


(Handicraft, Bukhara, Uzbekistan)


(Aral Sea - landscapes, Karakalpakstan, Uzbekistan)


(Nukus, Karakalpakstan, Uzbekistan)


(Nukus, Karakalpakstan, Uzbekistan)


(Samarkand, Uzbekistan)

(Samarkand, Uzbekistan)


(Silk tapestry, Samarkand, Uzbekistan)


(Samarkand, Uzbekistan)


(Samarkand, Uzbekistan)


(Samarkand, Uzbekistan)


(Samarkand, Uzbekistan)

(Samarkand, Uzbekistan)

(Samarkand, Uzbekistan)

(Samarkand, Uzbekistan)


(Shahrisabz, Uzbekistan)


(Shahrisabz, Uzbekistan)

(Toutes les photos par J. Silva Rodrigues)


quinta-feira, 15 de outubro de 2009

TELL ME WHY



("Mãos de militante", foto de J. Silva Rodrigues, Bruxelles, Dezembro 2008)

Vale a pena passar 3 minutos e 48 segundos para assistir a um dos momentos mais emocionantes de música que Youtube nos oferece. Declan Galbraith canta de forma simplesmente fabulosa, com uma voz bonita, cristalina, forte, de arrepiar e uma letra que nos obriga a reflectir, mesmo que não consigamos compreender tudo por estar em inglês, não importa! O importante é a força da mensagem e da reflexão!

Em http://www.youtube.com/, é fácil procurar este clip através do nome de Declan Galbraith. Vale a pena!

Tell me why

In my dreams, children sing
A song of love for every boy and girl
The sky is blue, the fields are green
And laughter is the language of the world
Then I wake and all I see is a world full of people in need


Tell me why, why does it have to be like this
Tell me why, why is there something I have missed
Tell me why, why 'cause I don't understand
When so many need somebody
We don't give a helping hand


Tell me why


Every day, I ask myself
what will I have to do to be a man
Do I have, to stand and fight
To prove to everybody who I am
Is that what my life is for?
To waste in a world full of war


Tell me why, why does it have to be like this
Tell me why, why is there something I have missed
Tell me why, why 'cause I don't understand
When so many need somebody
We don't give a helping hand



Tell me why
Tell me why
Tell me why
Just tell me why

Tell me why, why does it have to be like this
Tell me why, why is there something I have missed
Tell me why, why 'cause I don't understand
When so many need somebody
We don't give a helping hand


Tell me why does the tigers run?
Tell me why do we shoot the gun?
Tell me why do we never learn?
Can someone tell us why we let the forests burn


Why do we say we care?
Tell me why
Why do we stand and stare?

Tell me why
Why do the dolphins cry?

Tell me why
Can someone tell us why we let the ocean die


Why if we're all the same?
Tell me why
Why do we pass the blame?

Tell me why
Why does it never end?
Can someone tell us why we cannot just be friends

Why?

Why?

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Ásia Central - Central Asia: Fotografias - Photographs (vol. I)



Viajar, trabalhar, ou simplesmente passar por terras da Ásia Central implicam quase que necessariamente a existência de fotografias. Não que exista  - apenas! - a pressão de se fotografar como acontece sempre que temos a sensação de não mais voltar àqueles lugares, mas porque as gentes, os monumentos, as paisagens pedem um registo.

Foi isto que aconteceu comigo durante os vários anos que me proporcionaram várias viagens à Ásia Central e à Rota da Seda.

Durante cerca de sete anos, exibi em diversos locais mais de cinquenta fotografias a que decidi, pomposamente, ligar as referências de Ásia Central ou Rota da Seda. As fotografas "viajaram" em Bruxelas, em diversos locais da Comissão Europeia e não só, e também em Portugal: Matosinhos, Porto e por fim no Teatro de Vila Real. Foi com esta última exposição que esteve patente durante o passado mês de Abril de 2009 que me pareceu ter sido atingido o limite máximo de paciência que posso pedir ao público para apreciar as minhas fotografias sobre esta parte do mundo.

As fotos regressaram agora à "casa-mãe", a Bruxelas, e estão juntas com muitas outras que nunca viram grande luz do dia, porque nem tudo se pode expor.

Mesmo que esta exposição ou o tempo de a expor tenha chegado ao fim - pelo menos para mim - parece que as fotos ganharam alguma autonomia em relação ao autor e por isso fervem dentro das molduras. Pedem para continuar o seu caminho, nem que seja por forma diferente do das exposições em galerias ou espaços públicos.

Com as vantagens da Internet e dos blogues, acho que as fotos encontraram o que pediam. Vou, por isso, passar a expô-las (por fases sucessivas) neste blogue. Esta é a apresentação do primeiro "volume". Os restantes serão provavelmente acompanhados de um texto semelhante a este, em inglês e em francês. Nada de pretensiosismos; trata-se apenas de tornar a comunicação também acessível aos meus amigos anglófonos, francófonos e outros que, por diversas razões, ainda não conhecem bem o português.

Ásia Central - Volume I


("Oltonay", ou "Golden Moon", 2004, Bukhara, Uzbekistan)



(Refeição típica Uzbeque, Bukhara, Uzbekistan)



(Vendedor de especiarias, Bukhara, Uzbekistan)


(Vendedor de galinhas, Bukhara, Uzbekistan)


(Vendedor de especiarias, Bukhara, Uzbekistan)



(Escola primária, Kurgan-Tyube, Khatlon, Tajikistan)


(Escola primária, Kurgan-Tyube, Khatlon, Tajikistan)


(Syrkhandarya, Uzbekistan)


(Syrkhandarya, Uzbekistan)


(Syrkhandarya, Uzbekistan)


(Syrkhandarya, Uzbekistan)



(Syrkhandarya, Uzbekistan)


(Syrkhandarya, Uzbekistan)


(Syrkhandarya, Uzbekistan)


(Bukhara, Uzbekistan)