quinta-feira, 27 de março de 2014

O inverno ainda anda por cá…








"Vida nova"
Bruxelles, Beaulieu, Pêcheries
© J. Silva Rodrigues, Abril 2014


 
O inverno ainda anda por cá…

Hoje, dia 27 de Março, fui fazer o meu passeio higiénico da hora de almoço. Prática habitual até há bem pouco tempo, mas que, por esta ou por aquela razão, tem vindo a ser interrompida. Faz-me bem passear um bocado à hora de almoço. Engulo uma sopa em alguns minutos e dedico o resto do intervalo à visita dos lagos perto da zona onde trabalho.

Hoje, dia 27 de Março reparei que muitos dos automóveis ainda têm os pneus de inverno… Achei estranho! Distinguem-se pelo tipo de perfil e de piso. Apesar do sol e do calendário indicarem que a primavera assentou arraiais, os automóveis ainda se "calçam" como se estivesse para vir um grande nevão…

Hoje, dia 27 de Março o meu olhar turvo pelas lágrimas teimosas em não cair, talvez porque hoje, dia 27 de Março, fez-me precisamente lembrar que – em dia de mês e de semana –o dia 27 de Fevereiro foi há um mês (rir-se-ão com um sorriso amarelo os amigos de La Palice…) e regressou a tristeza e a saudade daquela mão dada, apertada, quente e viva do meu pai que ficou fria para sempre. Eram 16 horas e 48 minutos daquele dia 27 de Fevereiro…

O olhar turvado pelas lágrimas que teimaram em não cair não me deixou ver mais longe do que os pneus dos carros, porque passei perto deles, e lembraram-me que afinal o inverno ainda anda por cá…

Logo de seguida, no lago de onde a vista já não atinge os carros e os pneus dos carros, soltou-se a lágrima teimosa e então pude ver que lá estava a primavera e com ela uma mãe-cisne a tomar cuidadosamente conta dos ovinhos no ninho que provavelmente irão trazer à luz novos cisnes e nova vida para o lago.

O inverno ainda anda por cá, mas a primavera espreita com vida nova…

Bruxelles, Beaulieu, Pêcheries
© J. Silva Rodrigues, Abril 2014


quarta-feira, 19 de março de 2014


TODO O FILHO É PAI DA MORTE DO SEU PAI
Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai!

É quando o pai envelhece e começa a andar de devagar como se estivesse dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso.

É quando aquele pai que segurava com força a nossa mão já não tem como se levantar sozinho. É quando aquele pai, noutros tempos firme e intransponível, enfraquece de vez e demora o dobro da respiração para sair do seu lugar.

É quando aquele pai, que antigamente mandava e dava ordens, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela…

É quando aquele pai, antes falador, comunicativo, bem disposto e trabalhador, fracassa ao tirar a sua própria roupa e não se lembra onde estão os seus remédios.

E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz.

Todo filho é pai da morte de seu pai.

Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente a nossa última gravidez. O nosso último ensinamento. Altura para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir o amor recebido.

E assim como mudamos a casa para esperar a chegada dos  nossos bebés, tapando tomadas e colocando proteções, vamos alterar a rotina dos móveis para criar os nossos pais.

Uma das primeiras transformações acontece na casa-de-banho.

Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma barra no chuveiro.

A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas.

Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos dos nossos protetores. Não podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos os nossos braços nas paredes.

A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos pelas paredes. Os nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões.

Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos, envelhecer é subir as escadas mesmo sem degraus.

Seremos estranhos na nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Podemos ser arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como é que fomos capazes de não prever que os pais adoecem e precisariam de nós?

Feliz do filho que é pai do seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia.


No leito do hospital abracei ternamente o meu pai e falei-lhe ao ouvido: assim, baixinho, como falei aos meus filhos quando estavam doentes ou quando tentava adormece-los.

Fiquei o tempo que nos apeteceu, a ambos, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tempo, um tempo interminável.

Embalei o meu pai de um lado para o outro. Devagarinho, porque o meu estava muito doente e mexê-lo com força poderia causar sofrimento.

Acalmei o meu pai.  E acalmei-me a mim.  E apenas dizia, sussurrando:

·         “Estou aqui, estou aqui, pai! Sou o teu filho. Nada de mal te pode acontecer. Descansa! Estou aqui contigo e para ti!”
"Falei agora mesmo com o meu pai pelo telefone que a minha mãe encostou suavemente à sua orelha muito doente. Sei que me ouviu e que retribuiu o beijo que lhe enviei, mas infelizmente não consegui ouvir a voz do meu pai... talvez o telefone ainda não seja ainda muito bom. Mas sei que o meu pai ouviu a minha voz. Como fiquei triste, mas tão feliz!

O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali.

20 de Fevereiro de 2014

(Adaptado de um desconhecido)