terça-feira, 11 de março de 2014

TAL PAI, TAL FILHO

 
"Tal pai tal filho"
foto: Rui Rodrigues, Agosto 2013
 
Perdi o meu pai há poucos dias. Aconteceu no dia em que tinha que acontecer e precisamente naquele em que eu achava que o meu pai já não iria aguentar mais. Diz-se brutalmente: diversas falências concorreram para que se apagasse… Foi isso mesmo! Estávamos três bem juntinhos a ele, ao meu pai: a minha mãe – corajosa, forte, cheia de energia, mas não conseguia reter as lágrimas que lhe amaciavam ainda mais a pele da cara; foi um bálsamo que nenhum outro poderia substituir. A minha irmã mais nova apertava com força a mão direita do nosso pai e com a outra mão tentava limpar as lágrimas que escorriam pela cara da nossa mãe Também chorava, mas as lágrimas escorriam-lhe pela cara. A certa altura perguntou-me: achas que já foi? Eu disse que não, que ainda tínhamos o pai vivo, que ainda respirava. Eu estranhamente não consegui chorar!

Eram precisamente 16:48 quando o nosso pai deu o último suspiro: muito ténue, praticamente imperceptível, sem nenhum esgar, sem mudar nada que fosse o nosso pai até àquele último momento. Apertámos muito as nossas mãos às mãos do nosso pai, ainda quentes, ainda vivas para nós porque nos deram o calor de que tanto precisávamos naquele instante. O nosso pai já não nos sentia, mas deixou-nos as mãos quentes. Este calor manteve-se até chegarem os nossos irmãos que não demoraram, mas que chegaram quando o nosso pai já tinha deixado… Ainda sentimos juntos o calor do nosso pai.

Nos dias que se seguiram aos rituais próprios da nossa cultura social e religiosa, com encontros de familiares e amigos, com os mais improváveis reencontros entre pessoas de diversas origens: muitas vieram de longe no espaço, outras (muitas) vieram de longe no tempo. Foi mágico todo este reencontro. Foi provavelmente a maior homenagem que pudemos - todos!- fazer ao nosso pai.

Naquele dia do funeral esteve o nosso pai em todas as suas facetas. Esteve o "Nelo Piqueno" que um dia (diz-se, numa madrugada sabe-se lá de que dia e em que mês) saiu com a mãe Piedade, de Enxerto, Rio Frio (Arcos de Valdevez) em direção a uma terra desconhecida: Santa Cruz do Bispo, Matosinhos. Era um jovem magrinho, "finguelas", que iria entrar na construção civil e que entrada(!): a construção do edifício do Mercado de Matosinhos. Foi operador de grua. Era, vá-se lá saber porquê, o "Manel do Taco". Nunca gostou muito desta alcunha…

Anos mais tarde, ainda com o mesmo patrão mas numa atividade em tudo oposta ao betão e ao ferro, entrou no gás. Distribuiu pelo concelho de Matosinhos durante décadas o Gazcidla; primeiro num triciclo motorizado e depois como motorista de um camião. Era forte e até podia levar duas botijas de 45 quilos cada uma, uma em cada ombro, para fazer chegar o gás à Casa de Chá da Boa Nova, ao Restaurante Garrafão, a tantos outros, uns desaparecidos, outros ainda existentes, e subia por escadas até aos andares de prédios onde os elevadores ainda não eram obrigatórios. O então conhecido "Manel do Gazcidla" não conhecia obstáculos e o seu ginásio para cultivar o corpo era feito com pesos pesados por fora e leves (o gás) por dentro, mas ambos indispensáveis para cozinhar e para aquecer. Fazia este trabalho com uma devoção e paixão que lhe faziam esquecer o peso das botijas. Adorava o contacto com os clientes e trabalhava sem horário.

Vieram os anos setenta e com eles a Revolução. O "Manel do Gazcidla" foi talvez uma das primeiras vítimas das "curas de emagrecimento" das empresas. Um dia o patrão chamou os três motoristas que tinha ao seu serviço e foi direto na conversa: não podia ter mais do que dois motoristas! Ora, como o Manel era o único que já tinha um filho empregado (esse era eu…) seria aquele que menos precisava e por isso estava a escolha feita: estava despedido!

O "Manel da Gazcidla" transformou-se num outro Manel: o "Manel da Maria do Carmo". É que a minha mãe tinha desde há alguns anos o Pomar da Igreja, ali mesmo no Largo da Igreja, na rosa-dos-ventos de onde se parte para ocidente, para oriente e para o progresso. O "Manel da Maria do Carmo" foi o segundo pilar do negócio.

Este Manuel com mais facetas do que alcunhas, foi um homem tímido, respeitado e respeitador. Temido pelos que se julgavam capazes de tudo fazer no Pomar da Igreja quando este, a partir de certa altura do dia passava à versão taberna e a clientela por vezes turbulenta, não era receado pelos que lhe vendiam a pronto ou a crédito pois sabiam que era um homem de contas.

No dia 1 de Março deste ano, na homenagem que todos lhes prestámos no dia do seu funeral, foram todas estas facetas que estiveram representadas na igreja e no cemitério. Vieram amigos de longe e de perto, vieram amigos que deram corpo a todas as fases do meu pai.

Hoje, quando nos sentamos à mesa para almoçar em casa dos nossos pais, o lugar à mesa continua a ser o do pai e até temos cuidado em eliminar as correntes de ar porque – tal Napoleão Bonaparte – era as correntes de ar que o meu pai mais temia.

O meu pai deixou de ter vida física entre nós. Nunca foi personalidade de renome na vida pública, mas todos os nomes por que passou representam uma fase de prestígio e de percurso digno. Para ilustrar lá estiveram todos os que o conheceram e que nunca deixarão de recordar com amizade, com carinho e com muito respeito.

A todos os que estiveram connosco nestes momentos de grande tristeza, mas simultaneamente de alegria interior por nos sabermos acompanhados e em perfeita sintonia e solidariedade,

obrigado!

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