"Tal pai tal filho"
foto: Rui Rodrigues, Agosto 2013
Perdi o meu pai há poucos dias. Aconteceu no dia em que tinha que acontecer
e precisamente naquele em que eu achava que o meu pai já não iria aguentar
mais. Diz-se brutalmente: diversas falências concorreram para que se apagasse…
Foi isso mesmo! Estávamos três bem juntinhos a ele, ao meu pai: a minha mãe –
corajosa, forte, cheia de energia, mas não conseguia reter as lágrimas que lhe
amaciavam ainda mais a pele da cara; foi um bálsamo que nenhum outro poderia
substituir. A minha irmã mais nova apertava com força a mão direita do nosso
pai e com a outra mão tentava limpar as lágrimas que escorriam pela cara da
nossa mãe Também chorava, mas as lágrimas escorriam-lhe pela cara. A certa
altura perguntou-me: achas que já foi? Eu disse que não, que ainda tínhamos o
pai vivo, que ainda respirava. Eu estranhamente não consegui chorar!
Eram precisamente 16:48 quando o nosso pai deu o último suspiro: muito
ténue, praticamente imperceptível, sem nenhum esgar, sem mudar nada que fosse o
nosso pai até àquele último momento. Apertámos muito as nossas mãos às mãos do
nosso pai, ainda quentes, ainda vivas para nós porque nos deram o calor de que
tanto precisávamos naquele instante. O nosso pai já não nos sentia, mas
deixou-nos as mãos quentes. Este calor manteve-se até chegarem os nossos irmãos
que não demoraram, mas que chegaram quando o nosso pai já tinha deixado… Ainda
sentimos juntos o calor do nosso pai.
Nos dias que se seguiram aos rituais próprios da nossa cultura social e
religiosa, com encontros de familiares e amigos, com os mais improváveis
reencontros entre pessoas de diversas origens: muitas vieram de longe no
espaço, outras (muitas) vieram de longe no tempo. Foi mágico todo este
reencontro. Foi provavelmente a maior homenagem que pudemos - todos!- fazer ao
nosso pai.
Naquele dia do funeral esteve o nosso pai em todas as suas facetas. Esteve
o "Nelo Piqueno" que um dia (diz-se, numa madrugada sabe-se lá de que
dia e em que mês) saiu com a mãe Piedade, de Enxerto, Rio Frio (Arcos de
Valdevez) em direção a uma terra desconhecida: Santa Cruz do Bispo, Matosinhos.
Era um jovem magrinho, "finguelas", que iria entrar na construção
civil e que entrada(!): a construção do edifício do Mercado de Matosinhos. Foi
operador de grua. Era, vá-se lá saber porquê, o "Manel do Taco". Nunca
gostou muito desta alcunha…
Anos mais tarde, ainda com o mesmo patrão mas numa atividade em tudo oposta
ao betão e ao ferro, entrou no gás. Distribuiu pelo concelho de Matosinhos durante
décadas o Gazcidla; primeiro num triciclo motorizado e depois como motorista de
um camião. Era forte e até podia levar duas botijas de 45 quilos cada uma, uma
em cada ombro, para fazer chegar o gás à Casa de Chá da Boa Nova, ao
Restaurante Garrafão, a tantos outros, uns desaparecidos, outros ainda
existentes, e subia por escadas até aos andares de prédios onde os elevadores
ainda não eram obrigatórios. O então conhecido "Manel do Gazcidla"
não conhecia obstáculos e o seu ginásio para cultivar o corpo era feito com
pesos pesados por fora e leves (o gás) por dentro, mas ambos indispensáveis
para cozinhar e para aquecer. Fazia este trabalho com uma devoção e paixão que
lhe faziam esquecer o peso das botijas. Adorava o contacto com os clientes e
trabalhava sem horário.
Vieram os anos setenta e com eles a Revolução. O "Manel do Gazcidla"
foi talvez uma das primeiras vítimas das "curas de emagrecimento" das empresas. Um dia o patrão chamou
os três motoristas que tinha ao seu serviço e foi direto na conversa: não podia
ter mais do que dois motoristas! Ora, como o Manel era o único que já tinha um
filho empregado (esse era eu…) seria aquele que menos precisava e por isso
estava a escolha feita: estava despedido!
O "Manel da Gazcidla" transformou-se num outro Manel: o "Manel
da Maria do Carmo". É que a minha mãe tinha desde há alguns anos o Pomar
da Igreja, ali mesmo no Largo da Igreja, na rosa-dos-ventos de onde se parte
para ocidente, para oriente e para o progresso. O "Manel da Maria do Carmo"
foi o segundo pilar do negócio.
Este Manuel com mais facetas do que alcunhas, foi um homem tímido, respeitado
e respeitador. Temido pelos que se julgavam capazes de tudo fazer no Pomar da
Igreja quando este, a partir de certa altura do dia passava à versão taberna e
a clientela por vezes turbulenta, não era receado pelos que lhe vendiam a pronto
ou a crédito pois sabiam que era um homem de contas.
No dia 1 de Março deste ano, na homenagem que todos lhes prestámos no dia
do seu funeral, foram todas estas facetas que estiveram representadas na igreja
e no cemitério. Vieram amigos de longe e de perto, vieram amigos que deram
corpo a todas as fases do meu pai.
Hoje, quando nos sentamos à mesa para almoçar em casa dos nossos pais, o
lugar à mesa continua a ser o do pai e até temos cuidado em eliminar as
correntes de ar porque – tal Napoleão Bonaparte – era as correntes de ar que o
meu pai mais temia.
O meu pai deixou de ter vida física entre nós. Nunca foi personalidade de
renome na vida pública, mas todos os nomes por que passou representam uma fase
de prestígio e de percurso digno. Para ilustrar lá estiveram todos os que o
conheceram e que nunca deixarão de recordar com amizade, com carinho e com
muito respeito.
A todos os que estiveram connosco nestes momentos de grande tristeza, mas
simultaneamente de alegria interior por nos sabermos acompanhados e em perfeita
sintonia e solidariedade,
obrigado!
A tinta do coração é ainda aquela que deixa um rasto profundo apos a leitura.
ResponderEliminarBonita homenagem.
Obrigado!
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