ISMAIL KADARÉ – ENTREVISTA
Tirana, 18 de novembro de 2022
ISMAIL KADARÉ é, com certeza, o maior
escritor de língua albanesa e um dos maiores, mais reputados e mais talentosos
escritores europeus vivos. A sua extensa obra está traduzida em mais de quarenta
línguas, incluindo o português. Era esta, aliás, a opinião de José Saramago,
que chegou a propor Ismail Kadaré para laureado do Prémio Nobel da Literatura.
A entrevista de Ismail Kadaré aconteceu
por altura da 25ª Feira do Livro de Tirana (de 16 a 20 de novembro de 2022) com
a preciosa ajuda e colaboração de Bujar Hudhri, fundador e diretor da Editora
Onufri, a maior editora de língua albanesa e principal editora da obra de
Ismail Kadaré. Era de prever, para esta primeira entrevista a ser concedida a
um português que se deslocou expressamente a Tirana para se encontrar com o
escritor, que existissem algumas dúvidas sobre os objetivos e daí alguma
circunspeção, tanto do escritor como do seu editor.
As perguntas surgidas no decorrer da
conversa foram, de certa forma, alusões à obra que mais não pretendiam do que
ouvir da voz do escritor uma confirmação ou uma precisão. Assim, alguns dos
temas principais não podiam deixar ser evocados: as lendas dos Balcãs e da
Albânia, a neblina que pesou sobre o povo e sobre o território albanês durante
o período da ditadura e por fim, sempre o mesmo fim, o talento (a “arte”, segundo Kadaré) do escritor.
A tudo Ismail Kadaré respondeu, a nada se
furtando, mesmo que só com frases curtas.
Pensar que Ismail Kadaré é insondável,
impenetrável, imprevisível só é possível até o conhecermos pessoalmente e até
entrarmos na sua esfera pessoal, essa sim algo misteriosa, lendária, como
parece ser a sua escrita. A sua esfera espelha timidez, circunspeção e algumas
reticências aparentes. Tudo não passa de um perfil que se foi construindo ao
longo dos quase setenta anos de vida literária, de uma escrita constante – do
jornalismo à poesia, aos ensaios, ao romance – militante sem ser panfletária,
interventiva sem se esgotar per se na frente da luta política,
demolidora e inteligente na desconstrução da história de um regime severo e
ditatorial.
Ismail Kadaré conseguiu, ao longo da sua
longa carreira literária, destruir o “cliché” segundo o qual não se pode criar verdadeira
literatura sob uma ditadura comunista. Kadaré ficou a maior parte do tempo da
sua vida e da sua carreira como escritor no centro do ciclone estalinista do
ditador Enver Hoxha, exilando-se quase no final desse período de ditadura,
quando sentiu que a sua vida e a dos seus familiares corria maior perigo.
Natural de Gjirokastër, sul da Albânia,
onde nasceu em 1936, Ismail Kadaré é também conterrâneo do líder e ditador
albanês Enver Hoxha (1908-1985).
Dizem os estudiosos e conhecedores da obra
de Kadaré que ele encarna e ilustra a mais alta função de escritor desde que
este, com a sua escrita como única arma, intervém na história do seu país, do
seu povo e da humanidade, para fazer ouvir, sob o peso da opressão, no início o
murmúrio, depois a voz distinta, clara e por fim o grito da libertação.
Kadaré acreditava e continua a acreditar
na força da literatura. Confessa que, na mão do escritor, a literatura é uma
arma bem mais poderosa do que a arma de que dispõe o ditador. A obra do
escritor é perene, eterna. A arma do ditador morre com ele.
Ismail Kadaré é – ou “está”, para utilizarmos a “nuance” que a nossa língua permite – de poucas palavras. É e
não é, porque a obra imponente de um escritor como Ismail Kadaré é
essencialmente feita e constituída de palavras, muitas. Mas, provavelmente, não
“está” porque, de certa forma e como acabou
por reconhecer na nossa conversa, a sua obra está criada, a sua tarefa quase
cumprida. Por isso, o escritor, tendo usado a sua “arma poderosa” na forma e no tempo certo,
vai ficar para a História. Foi na melhor utilização do que ele considera ser a “arte” que o escritor se destacou e cumpriu
o seu dever no encontro com a vida e com a História; a História do seu tempo,
do seu povo, do seu país. No fundo, a História do nosso tempo.
No início de um dos seus livros “La légende des légendes” (ed. Flammarion,
1995, traduzido do albanês para francês por Yusuf Vrioni (1916-2001, grande
tradutor de Ismail Kadaré para francês a quem os intelectuais franceses
chamaram “l’orfèvre de la traduction”) Kadaré escreve: “No início dos anos 70, durante uma receção
em Paris, o embaixador da Albânia comunista teve um breve encontro com Miguel
Astúrias, nessa altura embaixador da Guatemala em França. No início, a conversa
podia parecer puramente formal, principalmente tendo em conta que os dois
pequenos países não tinham nem pensavam ter qualquer tipo de relações,
incluindo as relações diplomáticas. Miguel Astúrias, embaixador, mas também
escritor consagrado e Prémio Nobel da Literatura (1967) certamente achava
aquele tipo de encontros fastidiosos e por isso interrogou o embaixador
albanês: “Ah, a
Albânia, já ouvi falar do seu país. Tenho a curiosidade de saber se no seu país
há muito nevoeiro. E não lhe coloco esta questão por mero acaso. É que, se há
nevoeiro, também devem existir muitas lendas.” Miguel Astúrias morreu pouco tempo depois,
não permitindo a Ismail Kadaré, numa das suas viagens a França, aprofundar e
explorar o sentido desta curta troca de palavras.
A realidade, confirmada por Kadaré, é que
a Albânia e os Balcãs viveram sempre no interior de um nevoeiro de lendas. E
vivem ainda. Porque, considera Kadaré, das lendas sai sempre a verdade e esta
verdade saída das lendas é única e imortal.
Uma grande parte dos romances demonstra a arte
de Kadaré – aquilo que o escritor considera ser a essência e a razão da
perenidade da obra que fica depois da sua partida - na utilização das lendas,
não só para desmontar (por dentro e a partir de dentro) a máquina do regime,
mas também (ou sobretudo) para transmitir a importância da “bessa”.
Mas esta análise, feita deste modo, não
pode ou não deve ter efeito redutor: a obra do escritor vai muito para além
disso. Ismail Kadaré, através dos mais de 50 romances e ensaios, mostra como
foi e é possível romancear sem, contudo, entrar na literatura de ficção, dando
aos factos a importância e o significado que só os factos têm ao espelhar a
realidade, nem que seja uma certa realidade: a dos Balcãs e da Albânia.
É sabida a ação do escritor na
desconstrução de um regime totalitário a partir do seu interior. Mas uma
pergunta se impunha: por que razão o escritor não procurou o exílio, solução
escolhida por grande parte dos dissidentes, nomeadamente os dissidentes
oriundos de países socialistas no século XX? Este detalhe – se é que de um
detalhe se trata - poderia levar-nos a cair na tentação de olhar para Ismail
Kadaré como o “escritor do
regime”, pactuante,
conivente, enquanto este perfil lhe granjeou facilidades. Ora, Kadaré explica
claramente a sua opção, aliás corroborada por Helena Kadaré. O exílio do
escritor, quer por incompatibilidade com o regime quer por impossibilidade de
continuar a sua tarefa de escritor “engagé”, ou ambas, seria sempre a busca da solução de
facilidade, apesar de colocar em situação extremamente crítica e até perigosa
os membros da sua família que ficariam definitivamente rotulados de “inimigos e traidores do povo albanês”. Mas, mais importante do que isso,
afirma Helena Kadaré, seria dar, “de bandeja”, um mártir ao ditador, o que
nunca esteve nos objetivos, nem do escritor nem da família.
Assim sendo, havia que encontrar um “modus vivendi” para escrever, para desconstruir o
regime, para deixar para o futuro o registo do que representou viver sob o jugo
do ditador e do regime estalinista. Ismail Kadaré encontrou fontes inesgotáveis
– como repetidamente frisou durante a nossa conversa – para conseguir
transmitir o seu pensamento e a sua energia de luta: as lendas balcânicas e a
história da região e do país onde se encontra ancorada a presença, a extensão
temporal e geográfica do Império Otomano.
É precisamente nestas duas fontes que o
escritor “camufla” a
sua visão das coisas. Porque é de verdadeira “camuflagem" que se trata! Se as lendas servem para
justificar os atos e os factos que, em geral, compõem a trama dos romances de
Kadaré, alguns deles com toque de autênticos romances policiais, o Império
Otomano – que marcou a sua presença por mais de seis séculos na região – serviu
na perfeição para relatar, como numa visão ao microscópio, o regime de Enver
Hoxha como se do regime do Sultão otomano se tratasse ou então da continuidade
estalinista anterior ao “degelo liberal” de Nikita Krushchev. O quadro
temporal, a época dos factos, deixou de ser relevante, pois o que realmente
importava para Ismail Kadaré era mostrar como era o regime por dentro, na sua
ação real, dramaticamente verídica, concreta.
Apesar desta arte e da técnica ou
estratégia utilizadas para este exercício longo de mais de sessenta anos,
apesar da “camuflagem”,
era necessário, no final de contas, publicar os livros. Ora, este género de
literatura contrária ao regime – sem o ser sempre em aparência – não escapava
às garras da censura. Toda a obra de Kadaré foi sujeita a censura e a
tratamentos diversos e diversificados conforme os interesses do regime de Hoxha
na época.
Com contactos no exterior do país, era
necessário fazer chegar a “porto seguro”
o que vinha sendo produzido. Os originais corriam perigo. Como confessou sua
esposa, Helena Kadaré (também escritora com obra editada), ter originais
escondidos em casa (Shtëpia Studio Kadare, também visitada durante a estadia em
Tirana, e que serviu de residência da família Kadaré de 1973 a 1990) era como
ter uma bomba com retardador. Era urgente enviar os escritos para fora. Começou
então a atividade de “contrabando”. Os amigos de Kadaré, em particular
Alain Bosquet, que o visitavam com alguma regularidade, traziam de volta a
França, nos fundos da sua bagagem, os originais escritos dactilografados por
Helena (Ismail apenas ditava ou escrevia à mão). Foi decidido, a certa altura,
que os originais contrabandeados por esta via deveriam ser depositados num
cofre-forte que apenas poderia ser aberto por um dos amigos (da editora Fayard,
Paris), devidamente identificado no ato notarial, caso acontecesse “algo de súbito e anormal” ao escritor. É desta forma que começou a
ser acumulada a obra literária de Ismail Kadaré no exterior da Albânia, não sem
excluir outras fórmulas também expeditas, mas com menor recurso, como, por
exemplo, Kadaré servir-se do nome de outros escritores famosos, vivos ou não,
que, também eles (os nomes, não as pessoas) serviam para “camuflar” a obra que ia nascendo.
Com tradução da sua obra em mais de
quarenta países, a obra de Ismail Kadaré foi e é reconhecida, tendo recebido vários
prémios: Prémio Mundial Cino del Duca (1992), Man Booker International Prize
(2005), Prémio Príncipe das Astúrias (2009) e Prémio Jerusalém (2015). Ismail
Kadaré continua a ser um constante candidato ao Prémio Nobel da Literatura,
tendo sido nomeado por diversas vezes, nomeadamente com o apoio de José
Saramago. É membro associado da Academia das Ciências Morais e Políticas de
França, tendo recebido em maio de 2016, do Presidente francês François
Hollande, a Comenda da Legião de Honra. Como pensava José Saramago, a obra de
Ismail Kadaré merece e justifica, pela sua importância universal, o mais alto
galardão da Literatura Mundial.
Ismail Kadaré é, indubitavelmente, a
consciência do que representa a literatura e a escrita dos povos. Nessa função,
que exerceu com muito talento, sobe ao mais alto patamar, desfazendo paixões e
oposições, ou então enfatizando-as, em particular as de raiz étnica,
nacionalista ou chauvinista que, segundo o escritor, não correspondem – ou não
deveriam corresponder, acrescenta – à mentalidade dos homens e mulheres da
nossa era. Perante situações de conflito de que Kadaré foi e é ainda
contemporâneo, espera que os povos que derem o primeiro passo na direção dos
outros, na busca da paz e da resolução de conflitos, acabam por se situar num
patamar superior. Foi assim no caso do conflito do Kosovo; é assim nas
desavenças em geral.
Na sua bibliografia extensa, cobrindo
setenta anos de vida dedicada às letras, à “arte”, como Ismail Kadaré
gosta e insiste em falar da sua escrita, as metáforas, as figuras de estilo
literário, a utilização da História e das lendas dos Balcãs, o escritor exibe a
sua arma, mas, mais importante do que tudo, demonstra a maestria e o talento que
o distingue dos escritores de romances históricos. Ismail Kadaré não se assume
como um escritor de romances históricos. Kadaré deixa-se guiar e inspirar pelos
mitos e factos, sejam eles políticos, históricos, sociais ou todos em
simultâneo. No final, todos os seus romances assumem uma dimensão eminentemente
política. É nesta exploração minuciosa dos dados que recolhe da tradição (da vendetta
e da bessa – princípio de honra e de moral constantes do código
consuetudinário Kanun que rege o período de tréguas entre acertos de contas num
processo de vingança), das lendas de origem mais obscura e mais recuada, que
Kadaré se investe da roupagem de chefe de fila de uma nova etapa da renascença
albanesa, balcânica e europeia.
Estudioso de Ésquilo – pai da tragédia
grega – mas também de Shakespeare, Kadaré explora todos os aspetos fundadores e
essenciais à “bessa” que empresta à lei do sangue e ao dever da “vendetta” uma regulamentação minuciosa que
faz lembrar o desenrolar da tragédia antiga (“Eschyle ou le grand perdant”, ed. Fayard, 1985).
CAIXA DE TEXTO
Romances dos anos sessenta e setenta até
aos anos noventa – como “O General do
Exército Morto”, “Os Tambores
da Chuva”, “Abril
despedaçado”, “Palácio dos
Sonhos”, “A Pirâmide”, “O Acidente”, “As Frias Flores de Abril”, “Trois chants funèbres pour le Kosovo”, “Il a fallu ce deuil pour nous rencontrer”,
“Le Concert”, “Le Pont aux Trois Arches”, “Le légende des légendes”, “Le Grand Hiver” são apenas algumas das
peças-mestras da obra muito mais extensa e cheia de substância, de História, de
desmantelamento de ideias impostas, de desconstrução de sistemas e regimes.
São, resumindo, Ismail Kadaré pelas suas próprias palavras, a arte como
arma poderosa do escritor. A sua obra ganharia muito mais em ser traduzida na
sua totalidade para língua portuguesa e beneficiar da divulgação pela
publicação e republicação dos livros outrora editados em Portugal.
CAIXA DE TEXTO
A águia
- Existe nesta cidade uma águia que me faz
lembrar uma lenda antiga. Diz essa lenda que a ave de rapina te leva onde
quiseres na condição de, durante o voo, lhe dares pedaços de tua própria carne…
- Com certeza, meu irmão! Neste mundo,
cada um tenta arrancar alguma coisa ao outro. No início pedem-te um braço ou
uma perna, depois o corpo inteiro, para, por fim, chegar à tua alma. Mas não
precisas encontrar ninguém…. Procura encontrar em ti mesmo. No teu próprio
cérebro. É aí que encontrarás.
( L’Aigle, 1995)
Tirana, 20 de novembro de 2022
Entrevista (18.11.2022)
Joaquim Silva Rodrigues (JSR): Qual é a fonte que vos leva a
esconder, no interior de uma lenda, um crime?
Ismail Kadaré (IK): Isso é ao mesmo tempo fácil e difícil; não se pode “jogar” com isso… Existem as verdades universais que se
aplicam a toda a gente. Em cada crime podemos encontrar o seu lado universal,
omnipresente.
JSR: Mas
essa verdade é aplicável à Albânia de hoje? A Albânia de 2022, com as suas
lendas e tradições, pode continuar a conviver com essas verdades?
IK: Sim,
com certeza! Essas verdades continuam aplicáveis. É essa a maravilha da
verdade. Trata-se de algo que une as pessoas e os povos. É uma forma universal
de ver o mundo; é, de certa forma, a alma do povo, a alma do país, a alma do
tempo, por vezes a alma milenária. É uma maravilha que garante o carácter
universal da arte.
JSR: Dizem
de si que era um escritor que praticava o “contrabando”. Diz-se também que recusou o “cliché” segundo o qual um escritor não
pode escrever contra o regime instalado no seu país, ficando no interior desse
regime. Como explica o “contrabando”
e como poderão os seus leitores interpretar essa sua atitude?
IK:
Não só os escritores ou as pessoas das letras, mas também os cidadãos comuns,
toda a gente está a par dessa grande verdade: o mistério da arte. A arte tem
sempre esse ar misterioso. E o escritor tem a obrigação de abrir, de mostrar ao
mundo o que se passa. E foi assim que eu aproveitei do que essa verdade me
proporcionou, desse lado imutável da arte, da poesia. Algo de misterioso, de
escondido. Este sentimento encontra-se em praticamente todos os escritores, em
todas as épocas. Os escritores tiram partido deste lado da arte para criar uma
verdade universal, o que é formidável.
JSR: Há
uma questão que praticamente todos os leitores curiosos se colocam: como é que
nasce uma obra, ou como é que o escritor inicia a sua obra; como é que surge a
primeira palavra ou frase numa página em branco?
IK: Esse
trabalho surge de forma natural; julgo que não existe um “cliché” para explicar. Mas tudo pode mudar, de escritor para
escritor, de época para época, etc. A presença da arte está lá, ao mesmo tempo
eterna e também em plena mutação.
JSR: Como
escritor a tempo inteiro, tinha as suas rotinas para a escrita?
IK: Por
vezes sim, mas por vezes não. Tudo acontece de forma natural. Cada tema
literário traz consigo um enigma, umas vezes mais conhecido, outras
desconhecido. Pode representar para o escritor a felicidade, mas também a
infelicidade.
JSR: Falemos
agora um pouco sobre o Kosovo, região de é um grande conhecedor. Escreveu sobre
o Kosovo, antes, durante e após o conflito de 1999, destacando-se o livro “Il a fallu ce deuil pour se retrouver –
Journal de la guerre du Kosovo” (edições Fayard, 2000). O que o leva a concentrar-se
sobre o destino e sobre o problema do Kosovo e do povo kosovar?
IK: Isso
não é um mistério. É o mesmo para toda a literatura. Em cada assunto há uma
parte escondida, que não se vê e isso é para o escritor um tesouro. E em cada
ato humano, como é a escrita, para cada ator que todos somos, é preciso
descobrir e dar a conhecer o que não se vê a olho nu.
JSR: Ismail
Kadaré fala do que está escondido, dos mistérios, mas na sua escrita baseia-se
essencialmente em factos. Gostaria de me referir ao seu livro “Le cortège de la noce s’est figé dans la glace”, escrito entre 1981 e 1983 (edições
Fayard, 1987) onde relata a situação terrível vivida no Kosovo em 1981, em
especial o “tristemente
famoso” decreto de Belgrado que não permitia que os cidadãos kosovares
fechassem a porta de sua casa, à noite e durante a noite, antes de se irem
deitar, para facilitar a entrada da polícia política e das milícias que queriam
descobrir quem atentava ou tramava algum golpe contra o regime de Slobodan
Milošević. Como foi que conseguiu agarrar nestes factos – que não são, de todo,
ficção – e transformar num romance, com personagens vivas, verdadeiras?
IK: Foi
relativamente fácil: eu próprio vivi essa situação, aqui na Albânia. Eramos
todos obrigados a deixar as portas abertas, à noite, antes de ir dormir. Enver
Hoxha, o ditador, tinha a obsessão de “petit homme”, espírito maligno que não suportava a ideia do
mistério, não suportava a ideia de não saber o que os outros já sabiam, ele
sofria dessa doença, dessa obsessão de descobrir o que os outros pensavam.
JSR: É
dessa obsessão que nos fala no “Palácio dos
Sonhos” (edição Publicações Dom Quixote, 1992)? Como teve a ideia de criar essa
“instituição” monumental, terrível, enorme?
IK: Sim,
de maneira muito natural, sem nenhum esforço, porque conheci a realidade.
JSR: Mas
essa “instituição”
recua ao período do Império Otomano, não é verdade?
IK: Com
certeza! A intenção era descrever aos meus leitores a atmosfera pesada e
obsessiva que se vivia na Albânia do meu tempo.
JSR: Apesar
de tudo o que viveu e de tudo por que passou, acredita na reconciliação dos
povos? Na sua opinião, apesar dos momentos difíceis e de todas as experiências
por que passam, como será possível essa reconciliação? Como será possível
conciliar perdão com esquecimento ou um ou outro sentimento semelhante?
IK: Essa
resposta é muito difícil. Não sei bem como será possível conciliar perdão com
esquecimento ou um ou outro sentimento semelhante. Depende de muitos fatores
que podem variar com o tempo.
JSR: Estamos
em 2022, temos uma Albania mais moderna e em vias de modernização, candidata à
União Europeia. Como vê a importância das lendas e tradições, o peso dessas
nuvens sobre o seu país?
IK: A
importância desse contexto continua e não deve representar um peso específico
para o escritor que se serve de forma natural. É uma aliança natural entre o
mistério e a arte que deve continuar. As lendas estão sempre presentes, mesmo
quando dão a impressão de não existirem, mas estão presentes, existem.
JSR: A
“bessa” e o código Kanun ainda existem e
têm expressão?
IK: Sim,
existem, mas sob outra roupagem, natural, transformada. As pessoas continuam a
seguir, mesmo sem o saberem ou sem terem consciência, as regras e os preceitos
desse código de costumes ancestrais.
JSR: Relativamente
a outros países que têm ainda hoje regimes totalitários, qual o papel da sua
obra, dos seus romances, nesses países? Existe ainda uma atualidade dos seus
romances nos países que vivem regimes que podem recuar mais de seis séculos na
História dos povos?
IK: Julgo
que não se pode procurar essa correspondência de forma artificial. Contudo, é
possível encontrar em cada lenda uma verdade que não desaparece. O resto
depende do talento do artista e do escritor.
JSR: Significa
que os seus romances não são romances históricos?
IK: Exatamente,
não são romances históricos ou praticamente nunca.
JSR: Nunca
teve medo de dizer o que pensava? Mas utilizou técnicas especiais de
camuflagem, sem esconder a realidade, debaixo ou no interior das tradições e
lendas. Isso aconteceu porque percebeu desde muito cedo que o seu lugar como
escritor era dentro do problema, no interior, e não ter de sair para, mais
facilmente, relatar o que era necessário para denunciar e desconstruir.
IK: Sim,
tudo isso aconteceu de forma natural. Esse nevoeiro que pesava sobre a nossa
cabeça, essas lendas, tudo isso existe de forma natural. A utilização das
metáforas permitia transmitir ao leitor casos e situações que, de outra forma,
seria impossível dar a conhecer.
JSR: Com
uma obra literária rica, começada aos 17 anos (praticamente 70 anos de vida
literária) ainda recorre à poesia, ainda se considera poeta?
IK: Sim,
por vezes, mas mais raramente.
JSR: “Vos livres, votre art, sentent tous
le crime. Au lieu de faire quelque chose pour les malheureux montagnards, vous
assistez à la mort, vous cherchez des motifs exaltants, vous rechercheriez ici
de la beauté pour alimenter votre art. Vous ne voyez pas que c’est une beauté
qui tue” (citação de “Avril Brisé”, ed. Fayard 1982) Fazer da arte uma motivação pode ser
visto como uma atitude negativa?
IK: Depende.
Há situações que parecem idênticas, mas, na realidade, não são.
JS: Quando
olha para trás, vê tudo o que produziu, tudo o que escreveu, sabe que foi
rotulado de “escritor do
regime”, como se
revê na sua obra e como avalia a sua obra?
IK: Sem
entrar no ridículo, julgo que, em geral, os escritores não são os escritores do
regime. Antes pelo contrário, é o regime que tenta servir-se do escritor. O
escritor é muito mais forte. Por vezes faz-se o paralelo entre o ditador e o
escritor, mas a arma do escritor é, de longe, muito mais forte do que a arma do
ditador. O ditador cedo ou tarde desaparece. O escritor é intocável.
JSR: É,
então, por esse motivo, pensando dessa forma, que nasceu a sua ideia de não
sair do país, mesmo desmontando a estrutura do regime ditatorial? Ficou, apesar
de saber que era “uma árvore
marcada para ser abatida”?
IK: Exatamente!
Esse sentimento deu-me uma força, por vezes obscura, mas uma força para
continuar.
JSR: Obrigado!
(Ismail Kadaré entrevistado por Joaquim
Silva Rodrigues, Tirana, Albânia, 18 de novembro de 2022)
Vai ter muitos comentários...
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