sexta-feira, 26 de maio de 2023

ISMAIL KADARÉ – ENTREVISTA, Tirana, 18 de novembro de 2022

 



ISMAIL KADARÉ – ENTREVISTA
Tirana, 18 de novembro de 2022

ISMAIL KADARÉ é, com certeza, o maior escritor de língua albanesa e um dos maiores, mais reputados e mais talentosos escritores europeus vivos. A sua extensa obra está traduzida em mais de quarenta línguas, incluindo o português. Era esta, aliás, a opinião de José Saramago, que chegou a propor Ismail Kadaré para laureado do Prémio Nobel da Literatura.

A entrevista de Ismail Kadaré aconteceu por altura da 25ª Feira do Livro de Tirana (de 16 a 20 de novembro de 2022) com a preciosa ajuda e colaboração de Bujar Hudhri, fundador e diretor da Editora Onufri, a maior editora de língua albanesa e principal editora da obra de Ismail Kadaré. Era de prever, para esta primeira entrevista a ser concedida a um português que se deslocou expressamente a Tirana para se encontrar com o escritor, que existissem algumas dúvidas sobre os objetivos e daí alguma circunspeção, tanto do escritor como do seu editor.

As perguntas surgidas no decorrer da conversa foram, de certa forma, alusões à obra que mais não pretendiam do que ouvir da voz do escritor uma confirmação ou uma precisão. Assim, alguns dos temas principais não podiam deixar ser evocados: as lendas dos Balcãs e da Albânia, a neblina que pesou sobre o povo e sobre o território albanês durante o período da ditadura e por fim, sempre o mesmo fim, o talento (a arte”, segundo Kadaré) do escritor.

A tudo Ismail Kadaré respondeu, a nada se furtando, mesmo que só com frases curtas.

Pensar que Ismail Kadaré é insondável, impenetrável, imprevisível só é possível até o conhecermos pessoalmente e até entrarmos na sua esfera pessoal, essa sim algo misteriosa, lendária, como parece ser a sua escrita. A sua esfera espelha timidez, circunspeção e algumas reticências aparentes. Tudo não passa de um perfil que se foi construindo ao longo dos quase setenta anos de vida literária, de uma escrita constante – do jornalismo à poesia, aos ensaios, ao romance – militante sem ser panfletária, interventiva sem se esgotar per se na frente da luta política, demolidora e inteligente na desconstrução da história de um regime severo e ditatorial.

Ismail Kadaré conseguiu, ao longo da sua longa carreira literária, destruir o cliché” segundo o qual não se pode criar verdadeira literatura sob uma ditadura comunista. Kadaré ficou a maior parte do tempo da sua vida e da sua carreira como escritor no centro do ciclone estalinista do ditador Enver Hoxha, exilando-se quase no final desse período de ditadura, quando sentiu que a sua vida e a dos seus familiares corria maior perigo.

Natural de Gjirokastër, sul da Albânia, onde nasceu em 1936, Ismail Kadaré é também conterrâneo do líder e ditador albanês Enver Hoxha (1908-1985).

Dizem os estudiosos e conhecedores da obra de Kadaré que ele encarna e ilustra a mais alta função de escritor desde que este, com a sua escrita como única arma, intervém na história do seu país, do seu povo e da humanidade, para fazer ouvir, sob o peso da opressão, no início o murmúrio, depois a voz distinta, clara e por fim o grito da libertação.

Kadaré acreditava e continua a acreditar na força da literatura. Confessa que, na mão do escritor, a literatura é uma arma bem mais poderosa do que a arma de que dispõe o ditador. A obra do escritor é perene, eterna. A arma do ditador morre com ele.

Ismail Kadaré é – ou está”, para utilizarmos a nuance” que a nossa língua permite – de poucas palavras. É e não é, porque a obra imponente de um escritor como Ismail Kadaré é essencialmente feita e constituída de palavras, muitas. Mas, provavelmente, não está” porque, de certa forma e como acabou por reconhecer na nossa conversa, a sua obra está criada, a sua tarefa quase cumprida. Por isso, o escritor, tendo usado a sua arma poderosa” na forma e no tempo certo, vai ficar para a História. Foi na melhor utilização do que ele considera ser a arte” que o escritor se destacou e cumpriu o seu dever no encontro com a vida e com a História; a História do seu tempo, do seu povo, do seu país. No fundo, a História do nosso tempo.

No início de um dos seus livros La légende des légendes” (ed. Flammarion, 1995, traduzido do albanês para francês por Yusuf Vrioni (1916-2001, grande tradutor de Ismail Kadaré para francês a quem os intelectuais franceses chamaram lorfèvre de la traduction”) Kadaré escreve: No início dos anos 70, durante uma receção em Paris, o embaixador da Albânia comunista teve um breve encontro com Miguel Astúrias, nessa altura embaixador da Guatemala em França. No início, a conversa podia parecer puramente formal, principalmente tendo em conta que os dois pequenos países não tinham nem pensavam ter qualquer tipo de relações, incluindo as relações diplomáticas. Miguel Astúrias, embaixador, mas também escritor consagrado e Prémio Nobel da Literatura (1967) certamente achava aquele tipo de encontros fastidiosos e por isso interrogou o embaixador albanês: Ah, a Albânia, já ouvi falar do seu país. Tenho a curiosidade de saber se no seu país há muito nevoeiro. E não lhe coloco esta questão por mero acaso. É que, se há nevoeiro, também devem existir muitas lendas.” Miguel Astúrias morreu pouco tempo depois, não permitindo a Ismail Kadaré, numa das suas viagens a França, aprofundar e explorar o sentido desta curta troca de palavras.

A realidade, confirmada por Kadaré, é que a Albânia e os Balcãs viveram sempre no interior de um nevoeiro de lendas. E vivem ainda. Porque, considera Kadaré, das lendas sai sempre a verdade e esta verdade saída das lendas é única e imortal.

Uma grande parte dos romances demonstra a arte de Kadaré – aquilo que o escritor considera ser a essência e a razão da perenidade da obra que fica depois da sua partida - na utilização das lendas, não só para desmontar (por dentro e a partir de dentro) a máquina do regime, mas também (ou sobretudo) para transmitir a importância da bessa”.

Mas esta análise, feita deste modo, não pode ou não deve ter efeito redutor: a obra do escritor vai muito para além disso. Ismail Kadaré, através dos mais de 50 romances e ensaios, mostra como foi e é possível romancear sem, contudo, entrar na literatura de ficção, dando aos factos a importância e o significado que só os factos têm ao espelhar a realidade, nem que seja uma certa realidade: a dos Balcãs e da Albânia.

É sabida a ação do escritor na desconstrução de um regime totalitário a partir do seu interior. Mas uma pergunta se impunha: por que razão o escritor não procurou o exílio, solução escolhida por grande parte dos dissidentes, nomeadamente os dissidentes oriundos de países socialistas no século XX? Este detalhe – se é que de um detalhe se trata - poderia levar-nos a cair na tentação de olhar para Ismail Kadaré como o escritor do regime”, pactuante, conivente, enquanto este perfil lhe granjeou facilidades. Ora, Kadaré explica claramente a sua opção, aliás corroborada por Helena Kadaré. O exílio do escritor, quer por incompatibilidade com o regime quer por impossibilidade de continuar a sua tarefa de escritor engagé”, ou ambas, seria sempre a busca da solução de facilidade, apesar de colocar em situação extremamente crítica e até perigosa os membros da sua família que ficariam definitivamente rotulados de inimigos e traidores do povo albanês”. Mas, mais importante do que isso, afirma Helena Kadaré, seria dar, “de bandeja”, um mártir ao ditador, o que nunca esteve nos objetivos, nem do escritor nem da família.

Assim sendo, havia que encontrar um modus vivendi” para escrever, para desconstruir o regime, para deixar para o futuro o registo do que representou viver sob o jugo do ditador e do regime estalinista. Ismail Kadaré encontrou fontes inesgotáveis – como repetidamente frisou durante a nossa conversa – para conseguir transmitir o seu pensamento e a sua energia de luta: as lendas balcânicas e a história da região e do país onde se encontra ancorada a presença, a extensão temporal e geográfica do Império Otomano.

É precisamente nestas duas fontes que o escritor camufla” a sua visão das coisas. Porque é de verdadeira “camuflagem" que se trata! Se as lendas servem para justificar os atos e os factos que, em geral, compõem a trama dos romances de Kadaré, alguns deles com toque de autênticos romances policiais, o Império Otomano – que marcou a sua presença por mais de seis séculos na região – serviu na perfeição para relatar, como numa visão ao microscópio, o regime de Enver Hoxha como se do regime do Sultão otomano se tratasse ou então da continuidade estalinista anterior ao “degelo liberal” de Nikita Krushchev. O quadro temporal, a época dos factos, deixou de ser relevante, pois o que realmente importava para Ismail Kadaré era mostrar como era o regime por dentro, na sua ação real, dramaticamente verídica, concreta.

Apesar desta arte e da técnica ou estratégia utilizadas para este exercício longo de mais de sessenta anos, apesar da camuflagem”, era necessário, no final de contas, publicar os livros. Ora, este género de literatura contrária ao regime – sem o ser sempre em aparência – não escapava às garras da censura. Toda a obra de Kadaré foi sujeita a censura e a tratamentos diversos e diversificados conforme os interesses do regime de Hoxha na época.

Com contactos no exterior do país, era necessário fazer chegar a porto seguro” o que vinha sendo produzido. Os originais corriam perigo. Como confessou sua esposa, Helena Kadaré (também escritora com obra editada), ter originais escondidos em casa (Shtëpia Studio Kadare, também visitada durante a estadia em Tirana, e que serviu de residência da família Kadaré de 1973 a 1990) era como ter uma bomba com retardador. Era urgente enviar os escritos para fora. Começou então a atividade de contrabando”. Os amigos de Kadaré, em particular Alain Bosquet, que o visitavam com alguma regularidade, traziam de volta a França, nos fundos da sua bagagem, os originais escritos dactilografados por Helena (Ismail apenas ditava ou escrevia à mão). Foi decidido, a certa altura, que os originais contrabandeados por esta via deveriam ser depositados num cofre-forte que apenas poderia ser aberto por um dos amigos (da editora Fayard, Paris), devidamente identificado no ato notarial, caso acontecesse algo de súbito e anormal” ao escritor. É desta forma que começou a ser acumulada a obra literária de Ismail Kadaré no exterior da Albânia, não sem excluir outras fórmulas também expeditas, mas com menor recurso, como, por exemplo, Kadaré servir-se do nome de outros escritores famosos, vivos ou não, que, também eles (os nomes, não as pessoas) serviam para camuflar” a obra que ia nascendo.

Com tradução da sua obra em mais de quarenta países, a obra de Ismail Kadaré foi e é reconhecida, tendo recebido vários prémios: Prémio Mundial Cino del Duca (1992), Man Booker International Prize (2005), Prémio Príncipe das Astúrias (2009) e Prémio Jerusalém (2015). Ismail Kadaré continua a ser um constante candidato ao Prémio Nobel da Literatura, tendo sido nomeado por diversas vezes, nomeadamente com o apoio de José Saramago. É membro associado da Academia das Ciências Morais e Políticas de França, tendo recebido em maio de 2016, do Presidente francês François Hollande, a Comenda da Legião de Honra. Como pensava José Saramago, a obra de Ismail Kadaré merece e justifica, pela sua importância universal, o mais alto galardão da Literatura Mundial.

Ismail Kadaré é, indubitavelmente, a consciência do que representa a literatura e a escrita dos povos. Nessa função, que exerceu com muito talento, sobe ao mais alto patamar, desfazendo paixões e oposições, ou então enfatizando-as, em particular as de raiz étnica, nacionalista ou chauvinista que, segundo o escritor, não correspondem – ou não deveriam corresponder, acrescenta – à mentalidade dos homens e mulheres da nossa era. Perante situações de conflito de que Kadaré foi e é ainda contemporâneo, espera que os povos que derem o primeiro passo na direção dos outros, na busca da paz e da resolução de conflitos, acabam por se situar num patamar superior. Foi assim no caso do conflito do Kosovo; é assim nas desavenças em geral.

Na sua bibliografia extensa, cobrindo setenta anos de vida dedicada às letras, à “arte”, como Ismail Kadaré gosta e insiste em falar da sua escrita, as metáforas, as figuras de estilo literário, a utilização da História e das lendas dos Balcãs, o escritor exibe a sua arma, mas, mais importante do que tudo, demonstra a maestria e o talento que o distingue dos escritores de romances históricos. Ismail Kadaré não se assume como um escritor de romances históricos. Kadaré deixa-se guiar e inspirar pelos mitos e factos, sejam eles políticos, históricos, sociais ou todos em simultâneo. No final, todos os seus romances assumem uma dimensão eminentemente política. É nesta exploração minuciosa dos dados que recolhe da tradição (da vendetta e da bessa – princípio de honra e de moral constantes do código consuetudinário Kanun que rege o período de tréguas entre acertos de contas num processo de vingança), das lendas de origem mais obscura e mais recuada, que Kadaré se investe da roupagem de chefe de fila de uma nova etapa da renascença albanesa, balcânica e europeia.

Estudioso de Ésquilo – pai da tragédia grega – mas também de Shakespeare, Kadaré explora todos os aspetos fundadores e essenciais à “bessa” que empresta à lei do sangue e ao dever da vendetta” uma regulamentação minuciosa que faz lembrar o desenrolar da tragédia antiga (Eschyle ou le grand perdant”, ed. Fayard, 1985).


 

CAIXA DE TEXTO

Romances dos anos sessenta e setenta até aos anos noventa – como O General do Exército Morto”, Os Tambores da Chuva”, Abril despedaçado”, Palácio dos Sonhos”, A Pirâmide”, O Acidente”, As Frias Flores de Abril”, Trois chants funèbres pour le Kosovo”, Il a fallu ce deuil pour nous rencontrer”, Le Concert”, Le Pont aux Trois Arches”, Le légende des légendes”, Le Grand Hiver” são apenas algumas das peças-mestras da obra muito mais extensa e cheia de substância, de História, de desmantelamento de ideias impostas, de desconstrução de sistemas e regimes. São, resumindo, Ismail Kadaré pelas suas próprias palavras, a arte como arma poderosa do escritor. A sua obra ganharia muito mais em ser traduzida na sua totalidade para língua portuguesa e beneficiar da divulgação pela publicação e republicação dos livros outrora editados em Portugal.

CAIXA DE TEXTO

A águia

- Existe nesta cidade uma águia que me faz lembrar uma lenda antiga. Diz essa lenda que a ave de rapina te leva onde quiseres na condição de, durante o voo, lhe dares pedaços de tua própria carne…

- Com certeza, meu irmão! Neste mundo, cada um tenta arrancar alguma coisa ao outro. No início pedem-te um braço ou uma perna, depois o corpo inteiro, para, por fim, chegar à tua alma. Mas não precisas encontrar ninguém…. Procura encontrar em ti mesmo. No teu próprio cérebro. É aí que encontrarás.

( L’Aigle, 1995)

Tirana, 20 de novembro de 2022


 

 

Entrevista (18.11.2022)

 

Joaquim Silva Rodrigues (JSR):            Qual é a fonte que vos leva a esconder, no interior de uma lenda, um crime?

Ismail Kadaré (IK):       Isso é ao mesmo tempo fácil e difícil; não se pode jogar” com isso… Existem as verdades universais que se aplicam a toda a gente. Em cada crime podemos encontrar o seu lado universal, omnipresente.

JSR:       Mas essa verdade é aplicável à Albânia de hoje? A Albânia de 2022, com as suas lendas e tradições, pode continuar a conviver com essas verdades?

IK:         Sim, com certeza! Essas verdades continuam aplicáveis. É essa a maravilha da verdade. Trata-se de algo que une as pessoas e os povos. É uma forma universal de ver o mundo; é, de certa forma, a alma do povo, a alma do país, a alma do tempo, por vezes a alma milenária. É uma maravilha que garante o carácter universal da arte.

JSR:       Dizem de si que era um escritor que praticava o contrabando”. Diz-se também que recusou o cliché” segundo o qual um escritor não pode escrever contra o regime instalado no seu país, ficando no interior desse regime. Como explica o contrabando” e como poderão os seus leitores interpretar essa sua atitude?

IK:         Não só os escritores ou as pessoas das letras, mas também os cidadãos comuns, toda a gente está a par dessa grande verdade: o mistério da arte. A arte tem sempre esse ar misterioso. E o escritor tem a obrigação de abrir, de mostrar ao mundo o que se passa. E foi assim que eu aproveitei do que essa verdade me proporcionou, desse lado imutável da arte, da poesia. Algo de misterioso, de escondido. Este sentimento encontra-se em praticamente todos os escritores, em todas as épocas. Os escritores tiram partido deste lado da arte para criar uma verdade universal, o que é formidável.

JSR:       Há uma questão que praticamente todos os leitores curiosos se colocam: como é que nasce uma obra, ou como é que o escritor inicia a sua obra; como é que surge a primeira palavra ou frase numa página em branco?

IK:         Esse trabalho surge de forma natural; julgo que não existe um cliché” para explicar. Mas tudo pode mudar, de escritor para escritor, de época para época, etc. A presença da arte está lá, ao mesmo tempo eterna e também em plena mutação.

JSR:       Como escritor a tempo inteiro, tinha as suas rotinas para a escrita?

IK:         Por vezes sim, mas por vezes não. Tudo acontece de forma natural. Cada tema literário traz consigo um enigma, umas vezes mais conhecido, outras desconhecido. Pode representar para o escritor a felicidade, mas também a infelicidade.

JSR:       Falemos agora um pouco sobre o Kosovo, região de é um grande conhecedor. Escreveu sobre o Kosovo, antes, durante e após o conflito de 1999, destacando-se o livro Il a fallu ce deuil pour se retrouver – Journal de la guerre du Kosovo” (edições Fayard, 2000). O que o leva a concentrar-se sobre o destino e sobre o problema do Kosovo e do povo kosovar?

IK:         Isso não é um mistério. É o mesmo para toda a literatura. Em cada assunto há uma parte escondida, que não se vê e isso é para o escritor um tesouro. E em cada ato humano, como é a escrita, para cada ator que todos somos, é preciso descobrir e dar a conhecer o que não se vê a olho nu.

JSR:       Ismail Kadaré fala do que está escondido, dos mistérios, mas na sua escrita baseia-se essencialmente em factos. Gostaria de me referir ao seu livro Le cortège de la noce sest figé dans la glace”, escrito entre 1981 e 1983 (edições Fayard, 1987) onde relata a situação terrível vivida no Kosovo em 1981, em especial o tristemente famoso” decreto de Belgrado que não permitia que os cidadãos kosovares fechassem a porta de sua casa, à noite e durante a noite, antes de se irem deitar, para facilitar a entrada da polícia política e das milícias que queriam descobrir quem atentava ou tramava algum golpe contra o regime de Slobodan Milošević. Como foi que conseguiu agarrar nestes factos – que não são, de todo, ficção – e transformar num romance, com personagens vivas, verdadeiras?

IK:         Foi relativamente fácil: eu próprio vivi essa situação, aqui na Albânia. Eramos todos obrigados a deixar as portas abertas, à noite, antes de ir dormir. Enver Hoxha, o ditador, tinha a obsessão de petit homme”, espírito maligno que não suportava a ideia do mistério, não suportava a ideia de não saber o que os outros já sabiam, ele sofria dessa doença, dessa obsessão de descobrir o que os outros pensavam.

JSR:       É dessa obsessão que nos fala no Palácio dos Sonhos” (edição Publicações Dom Quixote, 1992)? Como teve a ideia de criar essa instituição” monumental, terrível, enorme?

IK:         Sim, de maneira muito natural, sem nenhum esforço, porque conheci a realidade.

JSR:       Mas essa instituição” recua ao período do Império Otomano, não é verdade?

IK:         Com certeza! A intenção era descrever aos meus leitores a atmosfera pesada e obsessiva que se vivia na Albânia do meu tempo.

JSR:       Apesar de tudo o que viveu e de tudo por que passou, acredita na reconciliação dos povos? Na sua opinião, apesar dos momentos difíceis e de todas as experiências por que passam, como será possível essa reconciliação? Como será possível conciliar perdão com esquecimento ou um ou outro sentimento semelhante?

IK:         Essa resposta é muito difícil. Não sei bem como será possível conciliar perdão com esquecimento ou um ou outro sentimento semelhante. Depende de muitos fatores que podem variar com o tempo.

JSR:       Estamos em 2022, temos uma Albania mais moderna e em vias de modernização, candidata à União Europeia. Como vê a importância das lendas e tradições, o peso dessas nuvens sobre o seu país?

IK:         A importância desse contexto continua e não deve representar um peso específico para o escritor que se serve de forma natural. É uma aliança natural entre o mistério e a arte que deve continuar. As lendas estão sempre presentes, mesmo quando dão a impressão de não existirem, mas estão presentes, existem.

JSR:       A bessa” e o código Kanun ainda existem e têm expressão?

IK:         Sim, existem, mas sob outra roupagem, natural, transformada. As pessoas continuam a seguir, mesmo sem o saberem ou sem terem consciência, as regras e os preceitos desse código de costumes ancestrais.

JSR:       Relativamente a outros países que têm ainda hoje regimes totalitários, qual o papel da sua obra, dos seus romances, nesses países? Existe ainda uma atualidade dos seus romances nos países que vivem regimes que podem recuar mais de seis séculos na História dos povos?

IK:         Julgo que não se pode procurar essa correspondência de forma artificial. Contudo, é possível encontrar em cada lenda uma verdade que não desaparece. O resto depende do talento do artista e do escritor.

JSR:       Significa que os seus romances não são romances históricos?

IK:         Exatamente, não são romances históricos ou praticamente nunca.

JSR:       Nunca teve medo de dizer o que pensava? Mas utilizou técnicas especiais de camuflagem, sem esconder a realidade, debaixo ou no interior das tradições e lendas. Isso aconteceu porque percebeu desde muito cedo que o seu lugar como escritor era dentro do problema, no interior, e não ter de sair para, mais facilmente, relatar o que era necessário para denunciar e desconstruir.

IK:         Sim, tudo isso aconteceu de forma natural. Esse nevoeiro que pesava sobre a nossa cabeça, essas lendas, tudo isso existe de forma natural. A utilização das metáforas permitia transmitir ao leitor casos e situações que, de outra forma, seria impossível dar a conhecer.

JSR:       Com uma obra literária rica, começada aos 17 anos (praticamente 70 anos de vida literária) ainda recorre à poesia, ainda se considera poeta?

IK:         Sim, por vezes, mas mais raramente.

JSR:       Vos livres, votre art, sentent tous le crime. Au lieu de faire quelque chose pour les malheureux montagnards, vous assistez à la mort, vous cherchez des motifs exaltants, vous rechercheriez ici de la beauté pour alimenter votre art. Vous ne voyez pas que c’est une beauté qui tue” (citação de “Avril Brisé”, ed. Fayard 1982) Fazer da arte uma motivação pode ser visto como uma atitude negativa?

IK:         Depende. Há situações que parecem idênticas, mas, na realidade, não são.

JS:         Quando olha para trás, vê tudo o que produziu, tudo o que escreveu, sabe que foi rotulado de escritor do regime”, como se revê na sua obra e como avalia a sua obra?

IK:         Sem entrar no ridículo, julgo que, em geral, os escritores não são os escritores do regime. Antes pelo contrário, é o regime que tenta servir-se do escritor. O escritor é muito mais forte. Por vezes faz-se o paralelo entre o ditador e o escritor, mas a arma do escritor é, de longe, muito mais forte do que a arma do ditador. O ditador cedo ou tarde desaparece. O escritor é intocável.

JSR:       É, então, por esse motivo, pensando dessa forma, que nasceu a sua ideia de não sair do país, mesmo desmontando a estrutura do regime ditatorial? Ficou, apesar de saber que era uma árvore marcada para ser abatida”?

IK:         Exatamente! Esse sentimento deu-me uma força, por vezes obscura, mas uma força para continuar.

JSR:       Obrigado!

(Ismail Kadaré entrevistado por Joaquim Silva Rodrigues, Tirana, Albânia, 18 de novembro de 2022)

 

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